MEDICHINA
2018

A consulta começa quando a paciente entra na sala, mas do espaço vazio retiram-se dados importantes para o diagnóstico, peças reveladas na ausência dos corpos. Um guarda-chuva esquecido dá indícios sobre o estado do sangue. Já uma sandália remete para alguém em fuga. As divisões desdobram-se a partir de múltiplas divisórias, propósitos misturados. Arredada a mesa do chá, enrolam-se os colchões no armário, refeições dão lugar a camas, abre-se espaço suficiente para rebolar. O gemido que chega de trás do biombo deixa a dúvida, pode ter sido provocado pela inserção da agulha. Um algodão ensanguentado permite ocultar o crime. Panos tingidos de bálsamo confundem-se com fronhas, a mancha de óleo no chão de madeira, frasco por fechar ou marca da gata que veio ter uma ninhada durante as férias. O buraco da fechadura deixa entrever um descruzar de pernas, procedimento habitual do exame ou jogo de espelhos na intimidade. Ramos de tomilho para temperar a carne ou libertar a tosse. Massa a levedar que ainda vai ser pão ou serviu para treinar a técnica antiga que põe corpos a dormir. Pela fresta da porta espalha-se um fantasma de cigarro aceso, enjoativo mas que convida ao café. O cadeado que tranca as portas de correr posto ao contrário revela que o intruso é canhoto. A sombra da nespereira cortada junta vizinhos que nunca se viram. Mesmo com os estores corridos pode ver-se um casal de nuvens: são três, divertidas. O cronómetro marca sessenta, indica a precisão de um batimento suíço que não se atrasa um segundo ou vaticina o apressado, tudo depende de quem fez a conta, se pela metade ou o dobro. Resta saber se desliza como pérolas ou prima pela aspereza marcada a canivete. Correm sons de muitas águas, chuva ou canos que juntam todos os rios. O riso de quem mostra a língua ou de quem pediu para a ver. Enroladas, em concha. Se for de ostra, acalma, se não, enfeita.

GONÇALO MERLINI